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Ato I – A Licença Poética Cósmica
Nessa louca, intensa, bela e controversa jornada de meio século, fui muito mais incompreendido do que celebrado, mais detratado do que benquisto, mais odiado do que amado. Mil vezes apunhalado pelas costas por aqueles a quem dediquei minhas energias, meu esforço e meu ideário conquistado a ferro e fogo nos descaminhos da existência.
Minha vida é só mais uma dentre bilhões nessa saga insana e bela de nossa espécie, não tem nada de especial a não ser o fato de ser minha. A minha chance como indivíduo de experienciar essa mágica licença poética cósmica, sentir, emocionar-me, gozar, sofrer, amar. Assim, transformei-me gradativamente em um imperador amoroso do meu pequeno mundo, da minha vida única, mas nem por isso especial, pois todas as vidas são únicas, e todo o experienciar singular.
Ato II – O Raro Toque Cósmico da Verdadeira Beleza
Poucas vezes fui realmente amado. Em grande parte dos casos tudo era encenação, jogos de cena para obterem de mim o que desejavam, mas esses nunca me enganaram. Tolos crentes na minha inocência, joguei seu jogo sórdido, pois é algo necessário na forja do espírito. Mesmo descontente com esse teatro das dissimulações, sempre ganhei esses jogos, seguindo o meu caminho solitário e glorioso, em silêncio, sem culpas, sem desejos de vingança, sem mágoas, nem ódios.
Assim mesmo, em muitos desses casos, eu soube como amar tais criaturas, perdoando suas vicissitudes - que já foram também minhas - mas desligando-me completamente delas no momento adequado. Nas pouquíssimas vezes em que fui realmente amado, senti o toque cósmico da verdadeira beleza, da pureza, da ternura e da sensualidade, valores universais que contrastam e equilibram-se com a sombra que também nos compõe. Com profundidade entreguei-me intensamente ao amor incondicional, sem amarras, sem limites, integralmente.
Ato III- A Minha Vasta Coleção de Erros
Colecionei e coleciono inúmeros erros, encheriam um novo oceano, mas são todos inéditos, pois só o tolo repete o mesmo erro e se autoboicota em uma sanha idiota de autodestruição. Todos os erros do mundo são meus, mas para serem cometidos uma única vez.
Nunca dobrei-me a nenhum dogma ou ideologia. Aprendi com muito sofrimento a dominar os meus desejos, tornando-me - com contínuo esforço e incessante vigília - o senhor de minhas vontades. Não abdicando dos prazeres, mas jamais me tornando escravo deles. Nunca dobrei-me a elogios ou críticas, para não tornar-me refém das validações alheias. Hoje tenho a perfeita consciência de quem sou, para o bem e para o mal, meus aspectos sólidos e minhas inconsistências.
Ato IV – A Arte como Magia de Transmutação
Cultivei e cultivo meu lado obscuro através da arte e da poesia, para não eclipsá-lo e permitir-lhe tomar uma dimensão espectral e destruir a força astral de minha luz. Crio e criarei minha própria forma de magia, usando a arte como meio para a transmutação de minhas realidades. O que não significa mudá-la materialmente e sim transmutar a minha compreensão dos seres, coisas e situações.
Jamais cerceei a liberdade de ninguém e em nenhuma hipótese aceitei que cerceassem a minha. Quando tentaram, suportei por pena e amorosidade até o ponto da ruptura absoluta. Pois percebi a duras penas que o único valor superior ao amor é a liberdade.
Crio, criei e criarei obras em inúmeros formatos, suportes, linguagens, com o único objetivo de autoexpressar-me visando a minha transmutação gradativa rumo à integralidade de ser. Portanto todas as minhas criações são partes legítimas de meu espírito em construção, apresentando suas sombras e luzes e os caminhos desejados de mudança.
Ato V – A Ilusão Torpe dos Legados
Não tenho nenhuma ilusão torpe de deixar legados, minha obra é para o meu agora, e irá sumir em instantes após minha partida deste plano, minha carne apodrecerá e adubará ervas mágickas (ditas daninhas) e flores singelas do cerrado. Minha alma permanecerá ainda por alguns poucos dias no coração de quem tocou, e meu espírito se libertará do ego reducionista conectando-se ao todo universal, esfacelando de vez o que restava de minhas memórias, títulos, prêmios, obras, e de meus desejos.
Tenho a total certeza de nunca ter mudado nada neste planeta, só ter plantado uma pequena semente em solos que já eram férteis e mesmo sem a minha presença floresceriam. Não tenho ilusões quanto aos rumos autodestrutivos de nossa espécie, mas tive a sorte de conviver com muitos seres humanos e não humanos que provaram-me a extrema beleza que pode emanar da vida. Essas criaturas ajudaram a construir aquilo que sou, e os novos seres que conhecerei pelo caminho seguirão auxiliando-me na eterna transmutação de ser.
Ato VI – O Amanhã é um Fantasma, o Agora é Pura Vida
Mesmo com a poeticidade da possibilidade pós-humanista de viver 300 anos, não faço planos para o futuro, não penso no amanhã, busco focar-me na presença absoluta no agora. Experienciando e surpreendendo-me com a beleza ou tragicidade de cada instante que sorvo da vida: o agora!
Sempre digo o que deve ser dito aos que amo e para os quais tenho real afeto. Nunca fui de deixar para depois nenhum abraço, beijo, ou declaração de admiração ou amor, pois todos os minimamente sábios sabem que o amanhã é um fantasma, uma ilusão que pode nunca concretizar-se. Mas não espero o mesmo comportamento de ninguém, pois os seres têm percepções distintas da realidade. Ao longo dos anos desenvolvi a sensibilidade para ler nos olhares e ações o que sentem por mim, e isso sempre me bastou.
Cultivei e cultivo amizades poucas e densas, não cultivei inimizades, mas elas surgem aos montes nessa era hipercompetitiva e polarizada pelo binarismo digital anticósmico que domina todas as linguagens. Apesar delas, sigo divertindo-me imensamente com a vida, inclusive com suas incertezas, dramas e dores e jamais perco meu tempo com o que já passou, ou com os que me desejam mal, eles serão consumidos por si mesmos, suas vaidades, e vazios interiores.
Celebro a chance única de sentir a vibração do sol nesta manhã, e de uivar com sofreguidão para as luas luminosas em noites calorosas.
Hoje sou o Ciberpajé, até quando serei?
Sou.
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